Olá!
Já vos aconteceu revisitarem o vosso baú de histórias e encontrarem coisas que escreveram há tanto tempo que, quando releem, perguntam-se "fui eu que escrevi isto?". Há uns aninhos escrevi o meu primeiro projeto de livro, que ficou na gaveta por rejeição das editoras, mas também por escolha minha, por ser uma mistura entre realidade e ficção. Há coisas que ficam melhor se guardadas apenas para nós. No entanto, aqui partilho as primeiras páginas desse projeto que reencontrei este fim de semana e a que dei o título de "Anjo Decadente".
«Chegou.
Chegou
finalmente o dia pelo qual ansiamos todo um ano e que, secretamente, odiamos: o
aniversário.
Hoje
é o meu aniversário: faço 17 anos. Uma vida toda.
Antes
de me levantar da cama revejo mentalmente, no escuro, a minha vida: recordo-me
da minha infância em casa dos meus avós, os infantários por que passei, os
grupos aos quais nunca pertenci realmente, o trajeto escolar... Céus! Como é
terrível a conclusão a que cheguei. Toda a minha vida se pode resumir a uma
palavra: carreira.
Vejo-me
ainda uma criança. Quantos anos terei? 3 ou 4? Sou tão miúda... mas já o tenho
nas minhas mãos: já seguro um livro. Uma história para colorir. “Aprende: esta é a cor azul, a cor do céu,
sob o qual a menina brinca e, nesse céu azul, está um sol amarelinho, que
brilha e brilha muito, porque é vaidoso.”.
Tudo
tem uma regra: aprende-as! “As meninas
vestem vestidos ou saias, gostam do cor-de-rosa e brincam com as bonecas, às
casinhas”. “Calças? Azul? Carrinhos?!
Não, não e não! Isso é para os meninos e só para os meninos; tu tens de gostar
do que as meninas gostam. Não acreditas? Vê no livro que pintaste: a menina tem
um vestido para pintares de cor-de-rosa e está a brincar com a boneca de pano,
enquanto o menino tem calças azuis e está a passear um carrinho pelo cordel”.
“Não, não faças isso! Faz antes assim.
Não queres?! Mas quem manda sou eu, por isso fazes assim e fazes já”.
Impossível fugir às regras... melhor aceitá-las.
Cresci.
Eu
lembro-me disto. Tenho 5 anos e mudei-me para uma casa nova, num bairro novo;
vou fazer novos amigos e vou estar num novo infantário. Lembro-me perfeitamente
de subir para o terraço da casa nova e aí ficar, muito tempo, à espera do pôr
do sol. Quando finalmente acontecia, admirava tal e qual um pintor o cruzamento
do amarelo e do laranja que desmaiavam num rosa que se afogava no roxo e azul
da noite que se avizinhava. A noite chegava enfim; era a vez de contemplar as
estrelas. “Tantos pontos brilhantes! Acho
que a primeira a aparecer foi aquela. E aquela ali ao fundo brilha tanto! Qual
será a Ursa Maior? Ouvi falar, na televisão, que há uma estrela a que chamam
este nome. Que giro! Aquelas parecem formar um papagaio que foi lançado para o
céu e ficou lá preso”.
Eu
também já tive um papagaio que encontrei na rua. Antes de o ter, costumava atar
um fio de lã a um furo que fazia numa folha de papel e tentava fazer com que
voasse. Até parece que o papagaio que encontrei foi enviado por uma força
superior.
“O quê? O teu nome escreve-se assim, mãe? Eu
também consigo escrever o teu nome, queres ver? Vês? E o meu, como é? Ah! Já
sei escrever o meu nome e o teu. Espera aí! Se esta letra é a que tem este som,
se as juntar faço esta palavra, certo? Boa, já sei escrever algumas palavras e
já chega; o resto fica para a escola.”.
6
anos. “Ena, ganhei tantos livros de
prenda de anos! Agora vou para a escola e depois já os saberei ler a todos.”.
7,
8, 9, 10 anos. “Vamos brincar?”, “Não,
tenho de fazer os trabalhos de casa”. Sinto-me realizada: encontrei algo em
que sou boa. Brincar? Depois, agora não. “Isto
é giro. E a chuva cai porquê? Ah! E pronto, acabei. Vou brincar. Ei, onde se
meteram todos? Já foram para casa? Pronto, sendo assim volto também para casa.
Vou ver mais umas coisas nos livros”.
11,
12, 13 anos. Já sou uma mulher. Nunca pensei que ser uma mulher pudesse doer
tanto (estou cheia de dores de barriga)! “A
minha mãe diz que ainda não sou uma mulher, que sou uma adolescente. Dizem que
este é um momento muito importante na vida de uma mulher, mas eu tenho duas
coisas a dizer: primeiro, pelos vistos, ainda não sou uma mulher e segundo,
qual é a importância que, eventualmente, poderá ter na vida de uma mulher umas
míseras dores de barriga”?
O
relógio não para: 14 anos. Pois é, este é um ano muito especial na minha vida.
Entrei para o Centro Comunitário do meu bairro; achei que ia ser interessante. Fica
numa casinha pré-fabricada, pequenina e nos dias em que há reuniões somos
tantos que mal cabemos lá dentro. Só é pena que, quando é para trabalhar,
alguns não apareçam. Dizem que o objetivo principal desde Centro é ocupar os
jovens para que não entrem por caminhos menos acertados. Vivo numa zona
problemática, na medida em que há alguma pobreza e contrabando (principalmente
a nível de droga), mas não tenho medo. No Centro, há muitas atividades a
realizar, como bailes, coreografias, ginástica, jogos e quermesses, mas, melhor
ainda, colónias de férias.
Esta
é, ainda, a época do primeiro grande amor: Márcio. Aqueles olhos verdes e
simpatia conquistavam qualquer uma... menos a minha mãe, claro. Acho que as
mães são superprotetoras neste aspeto. “Ai,
não quero qualquer um para a minha filha, mas também não vou escolher por ela.
A cama que fizer é a cama em que se há de deitar”. Nunca aconteceu nada
entre nós. No fundo foi mais um amor platónico: eu atrás dele e ele atrás de
outra, tal como no filme “O Casamento do Meu Melhor Amigo”, com a Julia Roberts
e a Cameron Diaz. Claro que eu fiz de Julia Roberts... Esta vida é assim, um
mar de desencontros.
15
anos. Nova fase escolar. “Se queres
vencer, esta é a altura: semeia agora para colheres depois”! Mas surge um
obstáculo inesperado: adoeço. Após uma operação de urgência, as coisas começam
a voltar ao normal. No meu quarto, no Hospital, vejo a noite que perde terreno
para as luzes que a combatem e assim fico, horas e horas. Deitada na cama, olho
pela janela e vejo os prédios do outro lado da rua. Algumas janelas têm luzes
acesas. Questiono-me sobre o que se passará naqueles andares. Às vezes, até
vejo as pessoas a andarem de um lado para o outro nas suas casas, levando a sua
vida normal. Até parece que sou um observador superior, que estou acima de tudo
- sou como que um narrador omnisciente, mas com a diferença de que não conheço
os sentimentos das personagens; apenas posso imaginá-los, criando inúmeras
histórias hipotéticas.
Descubro
uma nova presença. Não, não é Deus; nunca acreditei em Deus e não sei porquê. É
algo transcendente, que está acima de mim e olha por mim. Torno-me um pouco
mais positivista: não me dou por vencida. Deus... a Igreja. Não acredito nas
nossas igrejas. Os homens são homens, não são santos. Estudei História e
Filosofia. Tenho presente na minha cabeça a Inquisição, o Índex, os dízimos, as
perseguições, a falsidade de alguns padres que pregavam a pobreza e viviam na
ostentação; não posso esquecer isso. Não confio nos supostos representantes de
Deus. Se aquilo em que creio agora se pode apelidar de Deus, prefiro fazer o
culto à minha maneira. Uma curiosidade: se Deus não queria que se adorassem
estátuas, porque é que nas igrejas há tantas estátuas a representá-Lo? Cada um
com a sua fé e os seus valores...
Seguem-se
os 16 anos. “É a altura indicada para o
teu primeiro emprego. Começa por baixo, para saberes dar o devido valor ao que
tens.”. Boa experiência. Idas ao cinema com duas amigas - a noite é nossa!
Chegou.
Chegou
o meu aniversário: faço 17 anos. Concluo que, em prol do meu futuro, abdiquei
de muitas oportunidades e até de amigos. Que posso esperar deste ano, se acabo
de chegar à conclusão de que, em nome de um futuro promissor, desperdicei o
melhor da vida? Pergunto-me se ainda há alguma oportunidade escondida por aí,
para mim. Não vejo sentido nesta vida... se é que lhe podemos chamar de “vida”.
Agora
que penso nisto, lembro-me de ver os outros que passam por mim todos os dias e
até aqueles com quem passo o dia: rotina. Todos os dias a mesma hora de
levantar, os mesmos passos a seguir, nada de novo. Rotina. A rotina pode
destruir uma pessoa. A vida precisa de aventura, precisa de novidades para não
perder o sentido. E sabem que mais? Na vida não há muitas aventuras; há, sim,
batalhas. Cada dia é uma batalha diferente, mas estas batalhas do dia-a-dia
acabam por superar a diferença que têm entre si e tornam-se todas iguais. Rotina.
Quando finalmente temos perante nós uma mudança, uma nova oportunidade,
trememos, vacilamos e recusamo-la, preferindo não arriscar e continuando na
nossa rotina. É curioso o ser humano.
O
despertador interrompe-me os meus pensamentos. Bem, parece que vou ter mesmo de
levantar-me. »
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